Como comprar, ler e entender um livro? É essa a pergunta que sempre faço a mim mesmo quando corro as livrarias como um rato fanático atrás de um pedaço de queijo. Buscando interpretar essa angústia – que morrerá comigo e com muitos outros leitores – faço estas notas na esperança de corrigir-me na próxima vez que comprar um livro...
Tenho aqui em minhas mãos um dos best-sellers de 2007 – O Livreiro de Cabul. Logo na capa leio uma chamada dizendo que este é um campeão de venda nas listas do NYT. Pulo para a contracapa, onde um quarteto de citações informa um pouco mais.
Primeira: para o The Guardian, o resultado é formidável. Não me pergunte (nem o editor me diz) quê ou qual resultado é formidável – sei que essa é apenas uma frase de efeito. Talvez se refira ao fato de Asne Seierstad ter feito uma reportagem, tendo a cautela de utilizar um pseudônimo para nomear a figura principal.
Segunda: Seierstad é uma observadora astuciosa e lírica da vida doméstica afegã. (...) O Livreiro de Cabul pode ser lido como um romance, e é uma reportagem empolgante. Aqui avanço meu conhecimento mais um pouco. Sobre a autora, que é uma observadora astuciosa e lírica. Não imagino como se pode possuir tal combinação no caráter. E sobre o livro, que pode ser lido como um romance, e é uma reportagem empolgante. (The NYT)
Terceira: Mark Hertsgaard, do The Washington Post, é mais cru e realista: Ela escreve sobre indivíduos, mas sua mensagem é ampla, e ninguém que a leia será otimista sobre a transformação dessa cultura tradicional em uma democracia moderna. Hertsgaard cai no engodo em que estão mergulhados os ditadores democráticos do Ocidente, exceto que ele tem a capacidade de perceber que nem o Afeganistão nem o Iraque nem qualquer outro povo pode ser “civilizado” como o foram os nativos conquistados no século XVI – nem na marra! Coisa que os Césares não se dão conta.
O terceiro comentário, da Publishers Weekly, sequer merece reprodução, mas aqui vai apenas para mostrar o quanto o semanário dos editores enrolam o leitor com qualquer subterfúgio: Ficará como um dos melhores livros de reportagem sobre a vida afegã depois da queda do Talibã. Mas por que esta é uma frase descartável? Porque, já na orelha, se sabe que a autora escreveu a “reportagem”, por ter vivido três meses com uma família afegã. Só três meses dá para conhecer todos os costumes de um povo? E quem não conhece o histórico social do islã, cuja história é anterior às narrativas das Mil e uma noites?
Antes de a orelha acabar, fico sabendo ainda mais alguns detalhes sobre a autora e sua obra. Asne Seierstad apresenta uma coleção de personagens comoventes que reflete as contradições do Afeganistão, e nos emociona, sobretudo ao apresentar a rotina, a pobreza e as limitações impostas às mulheres e aos jovens do país. Nem se precisa ser um graduado em literatura para deduzir que este é um texto que anuncia de modo claro uma obra de ficção.
Completando: O protagonista, mesmo sendo um homem de letras, é um tirano na orientação familiar, nos negócios, e pautado pelo radicalismo. Prova disso é que, indignado com o resultado do trabalho da autora, o livreiro de Cabul que inspirou o personagem Sultan Khan foi à Noruega (!) com o propósito de pedir reparação judicial. Fala sério! O cara saiu de Cabul para a Noruega para processar a autora? Não seria mais barato e prático contratar um advogado? É um cabulense mesmo...
Mas o que posso dizer de um livro cujo copyright original é de 2002 e somente cinco anos depois aporta em Pindorama a bordo do tsunami – ou boom – de publicações sobre o Afeganistão? Será que foi em decorrência das invasões que César Bush tem feito mundo afora em busca de petróleo? Tudo é possível se a alma é grande, os best-sellers anunciados nas listas de literatura nos jornais e revistas especializadas estão aí mesmo para serem lidos, então vamos ler também O livreiro de Cabul, mas sem perder a ilusão sabendo-se que grande parte dos livros que os editores brasileiros trazem de fora são pura porcaria.
Sobre o personagem (esta denominação, repetida aqui, pelos críticos e pelos editores, refere-se quase sempre a uma figura literária de ficção), posso adiantar alguma coisa. Já existiu um Sultan Khan (1905-1966), nascido na Índia, mas em território que hoje pertence ao Paquistão. Foi um jogador de xadrez de força razoável, cujo mérito maior foi ter vencido o Campeão Mundial J. Raúl Capablanca no Torneio de Hastings (1930).
Este Sultan Khan, o que é? A história do livreiro pode ser contada inteirinha em dez páginas do livro. Nas outras trezentas e seis páginas são narradas velhas histórias sobre casamentos combinados, namoros furtivos, esposas múltiplas, discriminações, o papel das mulheres, fofocas em casa e na sociedade, radicalismo islamita do Talibã, tudo enfim que se lê em revistas, enciclopédias de qualidade mediana – ou na Wikipédia...
Comercialmente falando, como livreiro o personagem é realmente um comerciante, isto é, em primeiro lugar visa o lucro. Mas não deixa de lançar frases de efeito, como a que deu num interrogatório político: Podem queimar meus livros, arruinar a minha vida, podem até me matar, mas nunca poderia destruir a história do Afeganistão. Como disse lá em cima, resultado é formidável – mas essa é apenas mais uma frase de efeito.
Desde rapaz o futuro comerciante de livros se sobressaiu ao livreiro patriota: aproveitou uma viagem a Teerã para comprar livros escolares, mas aproveitou a ocasião e levou muito mais exemplares, que venderia aos seus colegas em Cabul – pelo dobro do preço. Essa mercantilização excessiva sobressaiu em outro texto, desta vez mais gravemente:
De volta do Paquistão para cuidar da sua livraria, Sultan adquiriu vários livros roubados da biblioteca nacional por uma pechincha. Por algumas dezenas de dólares comprou textos que datavam de vários séculos, entre eles um manuscrito de quinhentos anos do Uzbequistão pelo qual o governo uzbeque mais tarde lhe ofereceu 25 mil dólares. Ele encontrou uma edição particular de Zahir Shah de Firdausi, seu poeta favorito, a grande obra épica Shah Numa, e por um preço irrisório comprou diversos livros valiosos dos ladrões (...).
Nesse caso não tem como contemporizar – o Livreiro de Cabul, como descrito acima, é apenas mais um reles criminoso. Não é um livreiro geograficamente localizado – Cabul – mas um comerciante, exatamente igual a todos os comerciantes do mundo.
Pelo que se lê, O livreiro de Cabul tanto pode ser considerado reportagem alinhavada com elementos ficcionais, da mesma maneira como pode ser a ficção maquiada de reportagem. Tanto faz porque exatamente em razão da existência de tantos elementos ficcionais, tenha sido impossível a Shah Mohammed Rais – o verdadeiro nome de Sultan Khan, hoje proprietário de uma rede de livrarias – iniciar um processo contra Asne Seierstad.
O que ele fez – como hábil comerciante que é – foi promover seu próprio livro Era uma vez um livreiro de Cabul, escrito na esteira do sucesso de Seierstad...
Tenho aqui em minhas mãos um dos best-sellers de 2007 – O Livreiro de Cabul. Logo na capa leio uma chamada dizendo que este é um campeão de venda nas listas do NYT. Pulo para a contracapa, onde um quarteto de citações informa um pouco mais.
Primeira: para o The Guardian, o resultado é formidável. Não me pergunte (nem o editor me diz) quê ou qual resultado é formidável – sei que essa é apenas uma frase de efeito. Talvez se refira ao fato de Asne Seierstad ter feito uma reportagem, tendo a cautela de utilizar um pseudônimo para nomear a figura principal.
Segunda: Seierstad é uma observadora astuciosa e lírica da vida doméstica afegã. (...) O Livreiro de Cabul pode ser lido como um romance, e é uma reportagem empolgante. Aqui avanço meu conhecimento mais um pouco. Sobre a autora, que é uma observadora astuciosa e lírica. Não imagino como se pode possuir tal combinação no caráter. E sobre o livro, que pode ser lido como um romance, e é uma reportagem empolgante. (The NYT)
Terceira: Mark Hertsgaard, do The Washington Post, é mais cru e realista: Ela escreve sobre indivíduos, mas sua mensagem é ampla, e ninguém que a leia será otimista sobre a transformação dessa cultura tradicional em uma democracia moderna. Hertsgaard cai no engodo em que estão mergulhados os ditadores democráticos do Ocidente, exceto que ele tem a capacidade de perceber que nem o Afeganistão nem o Iraque nem qualquer outro povo pode ser “civilizado” como o foram os nativos conquistados no século XVI – nem na marra! Coisa que os Césares não se dão conta.
O terceiro comentário, da Publishers Weekly, sequer merece reprodução, mas aqui vai apenas para mostrar o quanto o semanário dos editores enrolam o leitor com qualquer subterfúgio: Ficará como um dos melhores livros de reportagem sobre a vida afegã depois da queda do Talibã. Mas por que esta é uma frase descartável? Porque, já na orelha, se sabe que a autora escreveu a “reportagem”, por ter vivido três meses com uma família afegã. Só três meses dá para conhecer todos os costumes de um povo? E quem não conhece o histórico social do islã, cuja história é anterior às narrativas das Mil e uma noites?
Antes de a orelha acabar, fico sabendo ainda mais alguns detalhes sobre a autora e sua obra. Asne Seierstad apresenta uma coleção de personagens comoventes que reflete as contradições do Afeganistão, e nos emociona, sobretudo ao apresentar a rotina, a pobreza e as limitações impostas às mulheres e aos jovens do país. Nem se precisa ser um graduado em literatura para deduzir que este é um texto que anuncia de modo claro uma obra de ficção.
Completando: O protagonista, mesmo sendo um homem de letras, é um tirano na orientação familiar, nos negócios, e pautado pelo radicalismo. Prova disso é que, indignado com o resultado do trabalho da autora, o livreiro de Cabul que inspirou o personagem Sultan Khan foi à Noruega (!) com o propósito de pedir reparação judicial. Fala sério! O cara saiu de Cabul para a Noruega para processar a autora? Não seria mais barato e prático contratar um advogado? É um cabulense mesmo...
Mas o que posso dizer de um livro cujo copyright original é de 2002 e somente cinco anos depois aporta em Pindorama a bordo do tsunami – ou boom – de publicações sobre o Afeganistão? Será que foi em decorrência das invasões que César Bush tem feito mundo afora em busca de petróleo? Tudo é possível se a alma é grande, os best-sellers anunciados nas listas de literatura nos jornais e revistas especializadas estão aí mesmo para serem lidos, então vamos ler também O livreiro de Cabul, mas sem perder a ilusão sabendo-se que grande parte dos livros que os editores brasileiros trazem de fora são pura porcaria.
Sobre o personagem (esta denominação, repetida aqui, pelos críticos e pelos editores, refere-se quase sempre a uma figura literária de ficção), posso adiantar alguma coisa. Já existiu um Sultan Khan (1905-1966), nascido na Índia, mas em território que hoje pertence ao Paquistão. Foi um jogador de xadrez de força razoável, cujo mérito maior foi ter vencido o Campeão Mundial J. Raúl Capablanca no Torneio de Hastings (1930).
Este Sultan Khan, o que é? A história do livreiro pode ser contada inteirinha em dez páginas do livro. Nas outras trezentas e seis páginas são narradas velhas histórias sobre casamentos combinados, namoros furtivos, esposas múltiplas, discriminações, o papel das mulheres, fofocas em casa e na sociedade, radicalismo islamita do Talibã, tudo enfim que se lê em revistas, enciclopédias de qualidade mediana – ou na Wikipédia...
Comercialmente falando, como livreiro o personagem é realmente um comerciante, isto é, em primeiro lugar visa o lucro. Mas não deixa de lançar frases de efeito, como a que deu num interrogatório político: Podem queimar meus livros, arruinar a minha vida, podem até me matar, mas nunca poderia destruir a história do Afeganistão. Como disse lá em cima, resultado é formidável – mas essa é apenas mais uma frase de efeito.
Desde rapaz o futuro comerciante de livros se sobressaiu ao livreiro patriota: aproveitou uma viagem a Teerã para comprar livros escolares, mas aproveitou a ocasião e levou muito mais exemplares, que venderia aos seus colegas em Cabul – pelo dobro do preço. Essa mercantilização excessiva sobressaiu em outro texto, desta vez mais gravemente:
De volta do Paquistão para cuidar da sua livraria, Sultan adquiriu vários livros roubados da biblioteca nacional por uma pechincha. Por algumas dezenas de dólares comprou textos que datavam de vários séculos, entre eles um manuscrito de quinhentos anos do Uzbequistão pelo qual o governo uzbeque mais tarde lhe ofereceu 25 mil dólares. Ele encontrou uma edição particular de Zahir Shah de Firdausi, seu poeta favorito, a grande obra épica Shah Numa, e por um preço irrisório comprou diversos livros valiosos dos ladrões (...).
Nesse caso não tem como contemporizar – o Livreiro de Cabul, como descrito acima, é apenas mais um reles criminoso. Não é um livreiro geograficamente localizado – Cabul – mas um comerciante, exatamente igual a todos os comerciantes do mundo.
Pelo que se lê, O livreiro de Cabul tanto pode ser considerado reportagem alinhavada com elementos ficcionais, da mesma maneira como pode ser a ficção maquiada de reportagem. Tanto faz porque exatamente em razão da existência de tantos elementos ficcionais, tenha sido impossível a Shah Mohammed Rais – o verdadeiro nome de Sultan Khan, hoje proprietário de uma rede de livrarias – iniciar um processo contra Asne Seierstad.
O que ele fez – como hábil comerciante que é – foi promover seu próprio livro Era uma vez um livreiro de Cabul, escrito na esteira do sucesso de Seierstad...
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