Nos idos de 1970, fui convidado para assistir a memorável e merecida homenagem prestada pela municipalidade do Rio de Janeiro ao consagrado teatrólogo Olavo de Barros. Curitibano, nascido em 1892, em plena Rua XV, Olavo de Barros foi pioneiro do rádio-teatro, prestigiadíssimo no Brasil e no exterior, atuou na Europa e obtendo aplausos da crítica especializada. Escreveu oito livros e dirigiu as principais companhias teatrais de sua época. Conquistou o público e a crítica como autor, ator, galã, professor da arte cênica e mestre em prosódia.
Na ocasião, também recebia idêntica homenagem (título de cidadão carioca) um general da reserva, pelos relevantes serviços prestados à Nação. Foi o primeiro a falar. O esplendoroso Teatro Municipal estava lotado.
Às dezessete horas em ponto, nosso general inicia seu discurso —o mais longo e enfadonho que meus ouvidos, por força das circunstâncias, tiveram que suportar.
A atriz Henriquieta Brieba e o crítico de teatro Jota Efegê, convidados de honra pelos vínculos que mantinham com o homenageado civil, sentaram-se ao meu lado - ela à esquerda, ele à direita. A atriz Cordélia Ferreira, irmã de Olavo, também sentou-se na mesma fileira.
O general dispara o verbo, valorizando pausada e paulatinamente cada palavra. Mais ou menos assim (aqui, me permito o recurso da síntese e da imaginação para não repetir os mesmos enfados):
“Em 1914, cheguei a esta Cidade Maravilhosa em busca da sobrevivência. No Nordeste, deixei os folguedos da juventude e, já no primeiro semestre, alistei-me no exército, cumprindo meu sagrado dever cívico. No mesmo mês, consegui emprego numa fábrica de biscoitos.”
“No segundo semestre de 1914, concluí os estudos secundários, que antes havia interrompido por força maior.”
“Ainda no segundo semestre de 1914, comprei a prazo um dicionário, uma enciclopédia e uma coleção de obras literárias, incluindo uma biografia de Napoleão Bonaparte, para enriquecer meus parcos conhecimentos.”
“Corria o mês de janeiro de 1915 e numa noite de torrencial tempestade, relâmpagos e trovões...”
E assim foi indo o orador, em meio a flores, holofotes. Cada ano, cada estação, cada mês, cada dia, cada noite, cada alvorada, cada pôr-do-sol, cada pingo de chuva, cada estrela, cada marechal.
As horas não passavam... Henriquieta Brieba entrou em sono profundo. Jota Efegê, com aquele ar de tolerância por dever do ofício, fazia círculos silenciosos com os polegares em movimento, enquanto os demais dedos, rígidos, permaneciam contidos e entrelaçados, comprimindo a barriga.
O general seguia firme e determinado, dissecando as horas e os minutos constantes de sua rica e fantástica trajetória.
“Em 1926..”.
“Em 1927...”
“Em 1928...”
E os anos foram arrastando-se lentamente, sofridamente para “nosostros”. Lá pelas tantas, um súbito ruído de uma poltrona na fileira de trás fez Henriquieta despertar.
Atônita, ela se virou para mim, deu uma gostosa bocejada, encostou os dedos em meu ombro e perguntou:
— Meu filho, em que ano ele está?
— Em 1953, faltam 21 anos para 1974 - respondi.
— Obrigada — disse ela, acrescentando: quando ele chegar em março de 1964, por favor, me acorde. E voltou a dormir.
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