Dizer que o povo come o pão que o diabo amassou e que o circo pegou fogo seria simplismo, fora a imprecisão de memória e lugar. Entretanto, há um aval histórico na “política do pão e circo”. Séculos atrás, o circo era o Coliseu romano. Hoje é o Circo do Sol (o canadense Cirque dü Soleil). Depois de tantos anos, o processo civilizatório mudou o perfil, o caráter do espetáculo e também o seu espírito – ma non troppo. Em Roma, a falta de trabalho no campo despachava os campesinos para a cidade, como sempre, alhures. Multidões buscavam sobreviver ao caos; não encontravam serviço digno, mas escravidão (velha conhecida, mais e menos violenta). Nada de novo? No Brasil, o Circo do Sol, depois da estréia em Curitiba, se apresenta em outras capitais, até março de 2008. Os ingressos custam de 130 a 400 reais (sem câmbio negro). Padrão euro, dólar americano, canadense.
No entanto, sim, vale a pena assistir. Pela alta qualidade do que se apresenta, a extraordinária estrutura, logística e tanto mais. Mas, antes de saber se vale mesmo a pena, convém consultar a carteira de dinheiro e a lista de prioridades. Sem esquecer que os shows, a princípio, se restringem a clientes especiais de um certo banco, que banca a publicidade da grande cena. É claro que se trata de um produto cultural para muitíssimos poucos. Para estes, a cultura. Amplificada pelo circo moderno. Pós-miséria, diria aquele bandido filósofo, sob holofotes, entre um presídio e outro. De resto, ninguém mandou ser pobre, ora bolas.
No circo romano, ao sabor do imperador da vez, os homens sentenciados – plebeus, escravos – disputavam o centro da arena com tigres e leões, não adestrados e ainda por cima famintos. No Circo do Sol, nada de espezinhar animais. Sinal claro de avanço: nos costumes e no respeito à natureza. O novo circo traz uma integração de gêneros - cênicos, musicais – que absorvem culturas de rua de mais de 40 nacionalidades, as que formam o elenco. Notam-se elementos do teatro mambembe, da antológica magia circence (malabares, trapézio, palhaços, bobos da corte), da ópera, do balé, de danças e ritmos exóticos. Um resumo do romântico namoro do artista popular com o seu respeitável público.
Enquanto isso, em Roma, Caio Otávio dividia a sociedade em ordens senatorial e eqüestre, incluindo estratégias de controle e arrebanhamento social. Nas filas do pão, o assunto dominante era o show no Coliseu às 5 da tarde. Em comum, tanto o circo antigo como o moderno prezam o frescor dos números apresentados, a realidade flagrante, tudo ao vivo, a beleza do espetáculo cheio, exaustivamente ensaiado – o circo romano se garantia pela repetição do roteiro: feras a devorar homens, levando a massa ao delírio, ao gozo sádico.
Alegría é o nome do atual espetáculo do Soleil. O hispânico acento agudo no ‘i’ é uma regra ortográfica do Cirquish – dialeto próprio, imaginário, criado pela companhia canadense. Outras semelhanças entre as duas lonas seriam a universalidade do entendimento e o trânsito de conceitos estéticos consagrados ou (re)inventados, comuns ao gosto de todos os viventes. Em linguagem mundana, portanto: pani et circensis, onde houvesse povo; alegría, onde houver público com poder aquisitivo. No mais, secos e molhados à vontade: nas televisões (a realidade pautada?), sabadões e domingões da vida. Lá onde passa o circo dos horrores – nada a ver com o maior espetáculo da Terra, o Circo do Sol!, todavia patético, como o Coliseu romano.
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Um comentário:
bom o poema do Jairo Pereira...ele tem algo publicado? Enfim, linkei o "palavras, todas palavras" lá no meu blog, o blues curitibano. Grande abraço
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