sábado, 20 de outubro de 2007
A biblioteca de Shishmaref - conto de frederico füllgraf
Manhã gélida de inverno precoce em início de maio, o sol abduzido em plena curva ascendente, e apagada a metade dos seus raios. Recortados contra o céu de chumbo pendurado opressivamente sobre a praia tropical, alguns coqueiros confundiam-se com o negativo de uma dentadura falhada. Encalhado na arrebentação, o que lembraria um monólito, de gelo cinza-fosco, dissolvia-se ao toque das ondas mansas, alcançando a praia como escultura inacabada. Na base do objeto insólito jazia um pingüim morto, com a expressão do terror congelada em suas pupilas azuis de gelatina murcha. Sua cabeça descansava sobre uma tábua de madeira profundamente fincada no gelo sujo. Deste, saltava papelão encharcado, o resto da capa de um caderno, lavada pela maré salgada. A cada porção de gelo cavada à mão, mais papel. Agora, livros. Vários. A única tábua e os livros insinuavam restos de um sistema, talvez uma estante, arrancada à força de sua posição. Uma página esgarçada de um livro sem capa relatava a fuga de Bernard Marx para a reserva dos “selvagens” – Huxley? Mais ao fundo da tábua, um mapa rasgado nas dobras, com uma geografia desbotada, inútil. E uma lata enferrujada de tabaco Half & Half. No meio do escolho, escondia-se uma foto em preto e branco, corrugada: um grupo de caçadores? Estavam a bordo de uma canoa e empunhavam lanças muito compridas, de três metros aproximadamente. O resto da cena, o alvo da caça, desafiou minha imaginação, pois faltava; a foto estava rasgada ao meio.
Naquele 18 de março, estava rabiscado numa das primeiras páginas do caderno, algo estranho, inquietante acontecera. O gelo desaparecera, deixando à vista a água do mar. Ninguém recordava um fenômeno assim insólito. Normalmente o gelo costumava despedir-se somente n´...[palavra impronunciável, mas traduzida ao Inglês como...] “a lua do sétimo mês, quando os pássaros cuidam de seus recém-nascidos”. De repente, gritos. Alguns velhos e mulheres lembraram-se: mais de dez caçadores tinham avançado sobre o mar, deslocando-se sobre o gelo. Um helicóptero decolara à procura dos homens. O desfecho hilariante: até o momento de seu resgate, os extraviados não sabiam que estavam flutuando sobre uma enorme plataforma de gelo descolada da ilha, rodopiando mar adentro. “Você não pode afirmar que está se movendo, quando o mundo inteiro ao seu redor está à deriva”, um dos sobreviventes comentara ao autor do diário.
Desnorteio. Em 1912 o Endurance de Sir Ernest Shackleton encalha no Mar de Weddel, faz água e começa a adernar. Com toda a tripulação e carga já a salvos, Frank Hurley, o australiano que fotografava e filmava a expedição, lembra-se, petrificado de frio e angústia, das dezenas de chapas fotográficas e latas de negativo em 35mm esquecidas a bordo. Desobedece a ordem de esquecê-las de vez, mas regressa das entranhas do barco, quando a proa, empinada contra o céu noturno, já mirava a Ursa Maior e metade de seu casco já estava engolfada. A câmera registra o desastre até os últimos momentos do Endurance. Apesar de mudas, pelas emendas das imagens de 1912 ainda vazam os uivos e mugidos pavorosos da madeira, triturada pelos dentes afiados do gelo. Resignados, à noite os náufragos armam suas barracas e atam seus barcos de salvamento às estacas fincadas sobre o gelo, que acreditam profundo. Só ao amanhecer percebem que seu mundo é um imenso território à deriva, flutuando no mar, rumo ao desconhecido. Os diários não o confirmam, mas é verdade que choraram sobre seus trenós inúteis, depois de terem devorado seus quarenta cães de tração. Antes deles, Robert Falcon Scott e seus companheiros abateram uma manada de cavalos no pólo. Mas essa é outra estória, a da deriva da sensatez.
Encharcadas, as folhas do diário apócrifo dissolviam-se entre os dedos. Na tentativa de secá-las ao vento, várias delas se perderam, rasgando ou esvoaçando de volta ao mar encrespado. Apesar de interrompido por borrões e brancos, o que restava do relato encaixava-se fragmentaria-mente, dando sentido ao registro. Um nativo chamado Akuvaak, que também era conhecido por Oliver Leavitt, amanhecera na barra, sobressaltado. Pregados nos movimentos do mar, seus olhos marejados de vento afiado acompanhavam a arrastada deriva de uma vasta bancada de gelo sobre a superfície alisada do oceano. Advertira que aquele era gelo fino demais, caso se aproximasse, em menos de cinco minutos teriam que dar o fora dali. Correram por suas vidas. Cerca de um quilômetro da orla, mão trêmula, esbaforido, o autor registrara: “Aproximando-se lentamente, a barreira vinda do mar chocou-se contra a costa da ilha, também de gelo, e a terrível colisão pareceu um terremoto, formando montanhas. Não é tudo o que vi, pois ajoelhei, as mãos entrelaçadas para uma prece, porque pensei que era o fim do mundo”. Na continuação, uma frase mencionava uma casa (tombada? desmoronada?) mas estava borrada.
Procurei distrair-me com o que fora um volume de um livro, tornado tijolo macilento, pegajoso, com frases embaralhadas, palavras com banguelas de letras, deslizando pelas bordas, caindo no mar: “E isso não se deve a nada que possa ser ouvido, ou visto, ou tocado, mas sua causa é algo puramente imaginário. O lugar não é bom para a imaginação e não aporta sonhos tranqüilizadores durante a noite” - advertência tenebrosa como os cenários do entrevado Lovecraft, cuja sombra tingiu as raízes dos coqueiros: tentáculos negros e calosos de polvos aflitos, penetrando e agarrando-se ao que restava da terra. Dentes sem gengiva, mundo descarnado, tentando se equilibrar sobre o precipício líquido. Senti-me tolo, ridículo, tive vontade de rir, e ri com medo, ao lembrar-me da ilha do desterro do mago Próspero. Para ele caía como uma luva a frase de Müller: “Onde as paisagens são belas, espreita a traição”. E esta insólita biblioteca marinha parecia dialogar com as razões do meu retorno à praia, território fantasmal. Poucos meses atrás, as generosas e sinuosas ancas do corpo nu de M. lagarteavam ao sol por aqui, esparramadas como duna entre as dunas, sulcadas por um delta de Vênus arbustivo, com fendas escurecidas e úmidas, perfumadas de maresia, nas quais me lambuzei. Depois, como é sabido, o mar invadiu a geografia. Bebeu areia, feriu a paisagem das terras baixas de Bangladesh ao Delta do Nilo, vomitou sobre os cartões postais de Kiribati, Vanuatu, Lohachara, Suparibhanga e Ghoramara – paisagens agora em branco no mapa de Mercator.
Duas horas foi o tempo que a brisa encharcada de névoa pútrida, sulfurosa, levou para secar algumas folhas isoladas de uma espécie de diário de campo. Pareciam anotações etnográficas, com referências a um lugar, “onde as coisas tinham sido feitas do mesmo modo, antigo, sem perturbações, desde tempos imemoriais”. Por um instante duvidei que o lugar era deste mundo, tropical, mas não teimei em decifrar o mapa com sua geografia lavada, porque essa disposição de textos não era acidental: sua intenção era irônica. Algo universal, contudo, certo personagem central da narrativa, um tal de Angatqaq, xamã. Sua percepção do universo dizia da vida como cenário de permanente confronto entre forças sobre-humanas
e os mortais (Nota algo frívola do narrador: ”se eu tivesse sido condenado a viver nestas paragens nada hospitaleiras, esquecidas por Deus, também teria inventado a minha teoria da conspiração”).
Retomando a seriedade respeitosa, o autor do diário recordava madrugadas mágicas, cujo silêncio era entrecortado pela cadência de tambores do xamã. No diário jura tê-lo visto conversar com uma beluga, que respondera assobiando das profundezas do oceano, maravilhando o povo reunido. E a apavorante dança do urso branco ? - um espetáculo de transmutação! Os enormes dentes afiados como estiletes e as garras que durante o ritual nasciam respectivamente da boca e das unhas do feiticeiro, aterrorizava os presentes, fazendo-os debandar. Algo vingado, o narrador anotara na margem de uma folha, que o “terror” infundado pelo bruxo era intencional. Conhecedor da rapinante alma humana, suas incorporações, espécie de “ética do sobrenatural”, visavam delimitar rigorosamente o número de animais abatidos, assegurando o equilíbrio. Mandingueiro, advertira para o perigo da perda da alma e da “intrusão de um objeto estranho”, que em seu caminho cruzara com almas vagabundas, que saltavam do corpo de um infeliz e saíam a passear...; o povo reunido em silêncio na praça, ficara aparvalhado. Em apuros, consegui rabiscar no verso do papel laminado do maço de cigarros, a lindíssima imagem usada pelo bruxo para ilustrar seu conceito de memória: “caixa de ferramentas para a coleta de tesouros”... Acendi o último cigarro e olhei em torno. Sentia-me devastado, uma caricatura de personagem da Tempestade, desterrado em paisagem de traição, ali abandonado pelo anjo maluco Ariel...
Ao final da tarde, as últimas folhas do diário não estavam completamente secas, mas manuseáveis. Consegui entender que em 1890 teriam desembarcado alguns homens desconhecidos na costa; carregando cruzes. Eram brancos, sorriram muito e distribuíram folhetos com desenhos. Reuniram o povo na praça, onde mandaram afastar as carrancas dos animais abatidos e adorados, e em seu lugar ergueram uma mesa de pernas altas, que chamaram de altar. Um dos folhetos causara espanto e seduzira o povo, que foi logo ter com o xamã e dizer-lhe que Assembly of God era um nome muito mais bonito para a gargi, a praça das assembléias. E então coisas estranhas começaram a ocorrer. Primeiro, o feiticeiro fora impedido de invocar o espírito dos animais: agora, em seu lugar um sacerdote branco imprecava a um deus ausente e pedia bênçãos para uma caça farta. Depois, o espanto geral: na segunda vez em que foram distribuídos, os nativos se negaram a comer aqueles biscoitinhos, chatos e semi-transparentes como escama de peixe, que o presbítero lhes colocava sobre a língua: então os homens brancos comiam o seu próprio deus ??
E um enorme número de animais foi abatido; não pelos nativos, claro!, mas pelos caçadores que tinham ocupado as últimas fileiras da capela improvisada; todos com o mesmo livro de orações sobre os joelhos. Cavalgavam enormes barcos a motor, armados com uma máquina lançadora de flechas. Como previra o xamã, a caça começara a escassear – a intrusão?, pergunta o narrador, perplexo. Abandonado, o feiticeiro intuíra o fim de seus tempos e retirara-se para uma enseada distante. Convertida a maioria dos nativos, caíram as ultimas árvores, os animais foram abatidos no período sagrado da resguarda e os aparelhos de TV ensinaram a comer alimentos de preparo rápido, embalados em papel, plástico e vidro, que logo encheram o supermercado e o consultório do médico; ambos instalados ao lado da nova igreja - acrescenta o diário, limitando-se ao factual com fina ironia. Seu autor arriscou apenas um breve comentário sobre a tragédia, uma autocrítica imbecil de seu próprio letargo: “Nunca imaginei que isto pudesse acontecer comigo - em que mundo, diabos!, vivi nestes anos todos ?”.
Da enseada divisei a ruína do farol, já parcialmente engolfado pelo mar e apesar de associação descabeçada, o cenário evocava Hypatia, filha de Téon, o último guardião da Biblioteca. Remota referência, já fora de ordem: além de mulher, rodeada por machos e cristãos, filósofa pagã, astrônoma guardiã de fogos e livros antigos. Imaginei-a caminhando em manhã ensolarada sobre os paralelepípedos dispostos em forma do universo, tomando o rumo da Biblioteca; muito bela, os pensamentos acossados por uma equação celeste. E, de repente, vindos do nada, saltam sobre ela quatro, cinco monges encapuzados, sacam de suas adagas e esfaqueiam-na até a morte. Depois os assassinos de Cirilo arrastam-na até a catacumba de uma capela, babam de desejo sobre seu corpo ainda quente, cortam-no em pedaços e lançam-no às chamas – seqüestrada, brutalmente desviada de sua trilha, antes mesmo que pudesse advertir no céu, cujo mapa decifrava melhor que uma quiromante a palma da mão, a enorme onda negra e gelada, que engolfaria M., sentada na ponta daquela rocha; jamais antes alcançada por um pingo d’água. Engraçados são os labirintos da mente, as associações insólitas: a astrônoma, o mágico e o feiticeiro – “bibliotecários” em extinção. Mas esta triangulação entre personagens aparentemente tão desvinculados no tempo e no espaço era uma zombeteira com sabor da bílis negra. No vaivém do pingüim morto na arrebentação, boiavam folhas de papel esgarçado de um certo “Protocolo de Intenções”, como os últimos vestígios da Biblioteca
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