sexta-feira, 9 de novembro de 2007

O MALA - conto de josé alexandre saraiva*

Meu primeiro mala era de lascar o saco. Tão logo eu descia as escadas da faculdade, nos intervalos, ia deparando suas alças à espreita de vítimas. Quis o diabo que eu fosse uma delas. O cara, sujeitinho de poucas letras, falava sem respirar, misturando assuntos sem qualquer nexo e sem conceder qualquer chance para a interlocução. Com sorriso largo e vulgar, atraía colegas desatentos para tagarelar sozinho, rir sozinho de seu sarapatel temático, alongando-se em narrativas enfadonhas, sonolentas. Para impressionar, puxava brocardos em latim de duvidosa procedência. Nesses infelizes momentos, quando não lograva desvencilhar-me do pentelho, com a paciência alcançando o pico da tolerância, e dando-me conta de que os cigarros, um atrás do outro, já não continham a diplomacia que carrego do berço, valia-me de algum lampejo de sua respiração para vingar-me sutilmente do porra-louca. Certa feita, num milagroso intervalo de sua fala, preguei-lhe esta: “Muito bem. Noto que você vive numa verdadeira obsolescência cultural”. E o mentecapto de pronto respondeu, agradecido: “Vindo do proeminente colega tão impactante ‘elogio’, não encontro palavras para agradecer sua bondade, que atribuo à nossa amizade. Aliás a bondade humana é pérola preciosa, encontradiça em seres que aos poucos vão desaparecendo da face da terra. Por falar no planeta terra, o que acha o nobre acadêmico sobre esse terrível buraco na camada de ozônio? Discordo da tese do Vidal. Para mim, o iminente desastre contra nossa civilização não tem outro culpado senão o próprio homem. Somos responsáveis, sim, por todos os males que nos afetam. Veja a tragédia que assola os rios. Chegamos ao ponto de matar os rios! Não poupamos sequer o mico-leão. Você sabia que a população do mico-leão não chega a três centenas? Somos ou não somos os culpados? É verdade que a ciência do Direito vê a culpa de uma forma diferente do meu ponto de vista, principalmente quando não há dolo, mas, no caso em debate, não restam quaisquer resquícios de dúvidas no sentido de que somos autores em pessoa de todos os males que grassam na face da terra. O prezado poeta concorda ou não concorda com a minha posição sobre o dolo e sobre a culpa? Antes de sua resposta, considere que toda a antítese no fundo é uma tese nova, a ser resolvida pela dialética. Como diz o Serginho, a maiêutica socrática, se por um lado ganha novos adeptos, por outro, sempre enfrentou calorosos combates. Mas esses doutos combatentes, conforme tese de mestrado defendida por minha esposa e em cuja classe já me incluía antes mesmo de nascer, com a mais pura convicção, etc., etc., etc., etc., etc., etc., etc., etc., etc., etc., etc., quá-quá-rá-quá-quá, quá-quá-rá-quá-quá, quá-quá-rá-quá-quá, quá-quá-rá-quá-quá, quá-quá-quá, quá-quá-quá, quá-quá, etc., etc., etc., etc., etc., etc, et, pô, pô, pô, etc...”
Uma noite, após a aula, violenta tempestade de granizo, seguida de intenso temporal, obrigou-me a buscar desesperadamente refúgio em antigo quiosque de cafezinho da Boca Maldita, no centro de Curitiba. Completamente encharcado, adentro o ambiente notando que na rua não havia viva alma. Idem no quiosque. Enquanto limpava os óculos embaçados, eis que o meu carrasco, igualmente fugindo da chuva - que durou exatos quarenta minutos -, invade o local discursando solenemente para mim sobre o desequilíbrio social na época dos faraós. O pior: meus cigarros ficaram ensopados e o brimo do quiosque já tinha se mandado, trancando com cadeado um armário onde guardava o lenitivo para minha aflição.

*o autor é membro da Academia de Letras José de Alencar e do Centro de Letras do Paraná.

Um comentário:

Anônimo disse...

Linguagem acessível, sem ser grotesca, bom ritmo e de baixar o pano rápido. Gostei.

Abraços aos palavreiros que estão de parabéns pela qualidade do conteúdo do blog. Não desistam como faz a maioria.

Ana Candida