segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

O DESEJÁVEL VELHO MUNDO - por marcio markendorf


a distopia em Aldous Huxley

A etimologia da palavra utopia, em grego, significa o não-lugar, e é o termo pelo qual podemos conceber o plano desejável de uma sociedade extremamente harmônica, estável e funcional, comprometida com o bem-estar da coletividade. Plano e desejo que se fundem com o sonho e a fantasia, por isso as sociedades utópicas sempre estão circunscritas em ilhas imaginárias. A ilha sendo tomada tanto como metáfora do isolamento, para um local geograficamente afastado, cercado, protegido, quanto como um fragmento do imaginário coletivo, do mito do paraíso e do eterno da felicidade. A literatura utópica descreve um equilíbrio geral das coisas sem qualquer explicação histórica ou demonstrativa de como a progressão dos valores sociais criou uma sociedade perfeita. No entanto essa impropriedade cronológica de desenvolvimento parece ser justificada pela própria escolha da localização geográfica: na representação mítica de várias culturas, a ilha é um mundo em miniatura, completo e perfeito porque possui um valor concentrado, além de ser tomada, também, como a representação do paraíso terreno. A sociedade utópica, portanto, por estar fundamentada no ideal, não escapa de permanecer situada num para-lugar e na descontinuidade histórica, como o é a cidade de Platão ou as ilhas de Thomas More e de Francis Bacon.
O que parece ficar explícito nas utopias é uma aura de profilaxia, como se fosse possível expurgar destes mundos imaginados todo o tipo de prática social que fosse nociva, proibida ou indesejável à sociedade. O projeto inalcançável da utopia está nessa fragilidade um tanto paradoxal, de homogeneização de princípios e valores, de fazer ausência definitiva do que antes era presença, de conceber um Jardim do Éden sem serpente. Com qualidades pouco objetivas e quebráveis, o projeto estaria ameaçado pela subjetividade do sujeito, que não se (con)funde com a comunidade porque é singular, e pelo convívio social, no qual a própria natureza política do homem é responsável pelo aflorar de vícios e excessos. Afinal era assim que Jean-Jacques Rousseau compreendia a sociedade: como um jogo de poderes corruptos. Para ele o homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe, o que quer dizer que, na dinâmica dos interesses individuais, a comunidade fica comprometida. E este não é um conceito anacrônico, reduzido apenas ao contexto iluminista, porque mesmo antes ou depois de Rousseau teorizar a esse respeito, as estruturas sociais revelaram modos de dominação, subversão e opressão político-social. Por isso o sonho de equilíbrio das utopias só poderia funcionar de um modo localizado, restrito e mínimo. Não há lugar para um projeto utópico fora da ilha, porque seria insustentável se aplicado a sociedades continentais e globalizadas, profundamente dependentes umas das outras, e em constante crise política. No entanto, o mais assustador é que o inverso desse caráter localista, irrealizável e abstrato da utopia, parece ser mais provável de ser atingido: as distopias operam dentro do presumível e assumem contornos mais concretos, executáveis em longo prazo, com impacto de amplitude mundial.
O sentido distópico para sociedade, ao invés de operar com a exclusão de componentes negativos para o funcionamento de uma sociedade, isola algumas dessas categorias e exagera sua negatividade. O plano da distopia parece ser realizável se esses mesmos componentes foram tomados pelo excesso, num tipo de previsão sombria do futuro. Enquanto a utopia concebe uma sociedade extemporânea, sem existência física no tempo e no espaço, a distopia fica ancorada na contemporaneidade, em espaços geográficos reconhecíveis e num tempo prospectivo. Se a utopia descreve como tudo deveria vir a ser, o sentido da distopia, por natureza, reside num pessimismo histórico, por conta das conjecturas de como o rumo desordenado da realidade pode comprometer a vida mundial.
É nesse viés que podemos ler o romance Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, como o engendrar do imaginário numa sombria prospectiva histórica. Publicado em 1932, no período entre-guerras, o romance faz uma suposição do que em longo prazo poderia acontecer com a sociedade através do crescimento desumanizado do progresso científico e material. De certa forma o sentimento de aniquilação, a deliberada exploração científica e tecnológica, a depressão econômica dos anos 30 contribuíram para a criação dessa sociedade fictícia no qual as convenções sociais são reordenadas por um estado aparentemente utópico. Sensação contraída apenas por quem faz parte do sistema, pois qualquer olhar estrangeiro poderia perceber o quanto de ilusão e alienação está por trás do que parecer ser uma sociedade perfeita. Perfeito disfarce para um regime totalitário que eliminou para sempre o passado, a subjetividade e a liberdade dos indivíduos.
O apagamento da subjetividade é o princípio norteador de todo Estado Mundial criado por Huxley, no qual comunidade, estabilidade e identidade determinam o funcionamento de um sistema rígido de estruturação social. Mas ao contrário do caráter extemporâneo das utopias, a distopia deste romance é localizada num tempo determinado, o ano de 635 depois de Ford, o que no nosso calendário oficial corresponderia ao ano de 2545. Para demonstrar como o impacto da ciência alterou o mundo e seus valores, até o tempo é reorganizado, o nascimento de Jesus Cristo como marco inicial do calendário cristão é substituído pelo ano de implantação da linha de montagem na indústria, por Henry Ford. Nesse futuro não apenas Deus não existe mais, o que se louva é a ciência e sua capacidade de trazer benfeitorias à civilização. Ford ocupa, ao mesmo tempo, o lugar sagrado de Deus e Jesus nesse soturno futuro previsto por Huxley, no qual o impacto profundo da ciência sobre o indivíduo inverte uma série de valores e o torna elemento facilmente substituível de uma sociedade tecnocrata.
Nesse sentido podemos perceber a importância de Henry Ford para o sistema, porque a combinação da linha de montagens e da engenharia genética permitiu a extinção completa da família, do indivíduo, dos valores afetivos e pessoais. Em 2545 as pessoas são inteiramente geradas em laboratórios, predeterminadas geneticamente, produzidas em série, padronizadas, uniformizadas e predestinadas socialmente antes mesmo de nascerem. Esse princípio de produção em série aplicado à biologia não somente produz um grande número de seres de modo completamente artificial, como o faz por um a técnica de clonagem que gera quase uma centena de pessoas idênticas. Nesse sentido o homem está para a reprodução artificial tanto quanto a obra de arte está para reprodutibilidade técnica: perde-se a aura e o caráter único do indivíduo, propriedades que seriam parte de uma qualidade humana inalienável e indestrutível.
Por isso o sentido de identidade perde seu significado enquanto caracteres próprios de um indivíduo que o distinguem de outro para adquirir um permanente sentido de indiferenciação, de igualdade e conformidade assumidas como naturais. O que permite que conceitos como comunidade e identidade acabem sustentando a estabilidade social. Não somente as classes sociais a que o indivíduo deve pertencer são predestinadas nos centros de incubação, mas a conformidade às funções e aos valores sociais é condicionada por técnicas hipnopédicas. Na fase de crescimento, durante o sono, as pessoas ouvem frases axiomáticas que substituirão o superego e a própria consciência do indivíduo. Num mundo de pessoas massificadas intelectualmente, a estabilidade torna-se uma constante porque garante a manutenção de um governo que lida com pessoas sem opinião própria.
O sentido de comunidade acaba contaminando de forma viral todos os outros valores. Família, amor e monogamia, por exemplo, tornam-se obscenidades, a liberdade sexual é incentivada, cada um é de todos. E para não afetar esse equilíbrio artificial da comunidade, mesmo com a predestinação genética e a hipnopedia, o Estado controla possíveis oscilações de humor por meio de uma poderosa droga psicoativa: o soma. Equivalente ao ecstasy ou prozac de hoje, o soma era uma droga lícita fornecida como ração diária. Por meio desse aparato conformador, manifestado em duas instâncias — genética e psicológica —, a comunidade parecia viver uma utopia na qual todos eram felizes. No entanto essa felicidade apenas pode ser garantida por meio da redução do indivíduo a um objeto humano profundamente alienado.
De certa forma a alienação e a supressão de liberdades individuais parece ser uma constante tanto nas utopias quanto nas distopias. O conhecimento é um direito reservado apenas aos detentores do poder o que significa dizer que pertence a poucos. Em livros como A República, de Platão, 1984, de George Orwell, e em Admirável Mundo Novo, a literatura fora banida ou despersonalizada por ser considerada um perigoso veículo de expressão, de pensamento e de conhecimento. Mas se n’ A República permanecem os filósofos, que dão conta do poder e das generalidades do conhecimento, em Admirável Mundo Novo esse tipo de saber é localizado. Os cidadãos não têm capacidade para responder nada do que esteja fora de sua especialidade. A combinação de conhecimentos pode ser nociva ao equilíbrio e ao progresso. Do mesmo modo, o passado também o é, só existindo um tempo presente, instantâneo, e o futuro, no máximo, pertence a uma conjugação do presente ou do pretérito: a história e a memória são extintas do novo mundo. Não existem museus, monumentos históricos ou livros, o passado está destruído e condenado.
Tanto as cidades utópicas de Callipolis, Amaurota ou Bensalém, quanto as duas distopias mundiais narradas na perspectiva londrina concordam que para o equilíbrio de um sistema é necessária a profilaxia dos elementos que o afetam. Nas cidades utópicas, o homem parece retornar a um estado de integração com a natureza, recuperando o sentido do bom selvagem e de nação virgem e estável. No entanto, não significa que esse retorno à natureza seja de todo positivo, porque tolhe liberdades, cria uma moral pouco flexível e gera o conformismo para uma sociedade em estagnação. Por outro lado, nas distopias a estabilidade social parece ser apenas garantida pela estabilidade individual. Por isso a necessidade do apagamento da memória e dos valores emocionais ligados à recordação, da supressão dos pais para a cura das neuroses identificadas pela psicanálise, da felicidade monitorada pelas drogas psicoativas ou da educação moral hipnopédica que torna a inteligência irracional e instintiva. O homem da distopia rejeita a natureza e volta-se para a tecnologia, a modernidade, o consumo e o progresso. Não existe tensão entre o real e o ideal porque a individualidade foi dissolvida no corpo social e proscrita de sua qualidade humana. Por trás da aparente felicidade do sistema, existe o futuro lúgubre da artificialidade do homem, da imortalidade patológica dos clones, da assepsia geral das coisas, do minimalismo do pensamento.
O irônico em distopias como Admirável Mundo Novo ou 1984 e, é desenvolver uma história a partir do ponto de vista de alguém que desliza para margem e moderadamente questiona as impropriedades do sistema. Bernard Marx, o protagonista da primeira, é torturado com o isolamento de tudo aquilo que seu condicionamento moral o fazia amar enquanto Winston Smith, o protagonista da segunda, acaba sendo exemplo de como o aparato estatal de controle conforma e reforma o indivíduo. Duas histórias que mostram o quanto a consciência crítica, o desejo e os valores afetivos podem provocar distúrbios numa ordem estabelecida. Talvez ainda mais se pensarmos que foi por amor que nossos protagonistas estranharam a ordem do mundo, e em meio ao caos do coração, intuíram que algo estava perdido para sempre. Mesmo que o passado já não exista mais, o tempo seja uma subtração, o espaço seja tão transitório e a vida tão sem sentido. A literatura das distopias parece apenas dizer que o amor a si e ao outro é o mais importante da vida E perdê-lo na tecnocracia e na virtualidade do mundo é esperar por essa solidão tão fria, essa sensação tão gasta de estar em todos os lugares e não estar em ninguém, mesmo sem poder perceber o quão admirável era o velho mundo e o antigo coração.

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