quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

CERVANTES: escravo, judeu, homossexual, proxeneta e... plagiário - por fernando arrabal salomão rovedo

Resenha do livro "Um escravo chamado Cervantes"

Faz pouco tempo que completou os 400 anos do nascimento da 1ª edição da primeira parte do romance “Dom Quixote de La Mancha” (1605-2005). E ainda hoje ressoa o foguetório das comemorações, das muitas edições e reedições de obras escritas por Miguel de Cervantes. Mas também mereceram destaque aquelas publicações destinadas
a especular sobre a vida do audaz manchego. Muitas leituras focalizam não só as obras de Miguel de Cervantes, mas também o vasto repertório de obras correlatas, destinadas a esmiuçar o acervo literário e a vida do genial fidalgo.

Um dentre os milhares de trabalhos sobre Miguel de Cervantes é Um escravo chamado Cervantes, de autoria do escritor hispano-marroquino Fernando Arrabal. Não é uma obra recente, primeiramente foi lançado em 1996 na França, onde o autor é mais reconhecido por sua obra teatral e adaptações cinematográficas, para aportar três anos depois cá entre nós em edições e reimpressões – o que é este caso.

Fernando Arrabal é um autor que ficou conhecido pelo talento rebelde, explosivo, que caracterizou alguns autores nascidos sob a ditadura franquista. Desde o tempo das primeiras peças e filmes, criou fama como o inventor do teatro do pânico – é o que disseram de suas chocantes peças teatrais e roteiros para cinema – fama que carregou para toda a obra que produziu, sob o signo da reação cultural ao franquismo.

Ser um rebelde revolucionário nas letras é ao, mesmo tempo, usufruir de certa liberdade, mas igualmente servir de telhado de vidro diante da pressão dos reacionários às suas idéias. Se, por um lado, lança um autor nos mares da fama de maneira espetacular, por outro, obriga-o a seguir uma estrada nem sempre gloriosa, porque cheia de balões de ar, vácuos indesejáveis: são os caminhos das terras de ninguém, de onde muitos saem vestidos num paletó de madeira.

Este Um escravo chamado Cervantes veio a lume baseado num documento, datado de 1569 e descoberto espetacularmente em 1820, segundo o qual se vinha saber que Cervantes em plena juventude (quando tinha só 21 anos de idade), foi condenado pelo rei da Espanha, a ter a sua mão direita amputada e a um desterro de dez anos. Essa condenação, segundo os cânones da época, equivalia à pena aos acusados de homossexualismo, nem mais nem menos! No entanto o jovem futuro escritor conseguiu que a dita condenação não fosse cumprida graças à cobertura que lhe deu um Cardeal amigo da família, que facilitou sua fuga para a Itália.

É claro que a partir desta explosiva descoberta – que muitos cervantistas ilustres se esforçaram por manter escondida – tudo ou quase tudo que se escreveu sobre Miguel de Cervantes teria que passar a uma severa e rigorosa revisão. Fernando Arrabal tomou para si a tarefa de exercer uma parcela dessa revisão. Se ele foi feliz ou infeliz nesta tarefa, dize-o a fama que o livro arrebanhou. Seja como for, mexer com Cervantes, sua obra e sua glória, é algo assim como condenar – o autor e a audácia – ao cadafalso.

Para classificar Cervantes como um escravo, Arrabal nos remete não só ao motivo direto do documento, comprovando, sim, que a escravidão se verifica não apenas sob os grilhões de ferro, mas igualmente sob a ditadura efetiva que a nobreza exercia sobre os súditos. Aliada dos poderes secundários da Igreja, cuja opressão se verifica como segundo degrau hierárquico da dominação, essa escravidão atingiu Cervantes diretamente no cerne do seu labor literário. Como autor ele não conseguiu romper a barreira dos intelectuais próximos do poder e da Inquisição para levar a sua obra ao público. Antes, teve que gastar prestígio e artimanha para se manter vivo e atuante.

Num segundo plano Arrabal perde muito tempo na busca dos antepassados mais longínquos de Cervantes para posicioná-lo como judeu de descendência cristão-novo. O que temos, na tese defendida por Arrabal, é que o cristão-novo jamais deixa de ser judeu, mesmo que decorridas várias gerações. Mas Arrabal no livro descreve uma exceção dessa regra de interesse: o Bispo de Burgos – depois também de Castela – dom Pablo de Santa Maria, foi um antigo rabino da cidade. Dom Pablo, assustado pela imprevista matança e perseguição dos judeus, abraçou o cristianismo com tal fé que logo alcançou a mitra de Burgos. A nova fé que o Bispo assumiu seria de tal maneira exacerbada por Pablo de Santa Maria e de tal modo cruelmente exercida, que tanto o pai quanto o filho, dom Alonso de Cartagena (que também seria Bispo), se transformaram em ferozes implacáveis perseguidores de judeus!

Portanto, não há como explicar a obsessão que move Arrabal em Um escravo chamado Cervantes, tampouco essa necessidade depressiva de demonstrar que a descendência de Cervantes fosse ou não fosse judia, posto que, no caso, se trata do menor e menos importante pedaço da biografia do genial fidalgo de La Mancha.

Para fugir da pena a que fora condenado pelo rei da Espanha, Miguel de Cervantes foge para a Itália. Ali chegando arranja abrigo, proteção e trabalho na casa do monsenhor Giulio Acquaviva y Aragon, que Cervantes conheceu durante as pompas fúnebres de dom Carlos, filho de Filipe II morto prematuramente – assassinado pelo pai, dizem. Mais uma vez aparece em cena o Cervantes escravo, desta vez de Acquaviva, também efeminado. Para fugir da escravidão, da subserviência opressiva, Cervantes aproveita a convocação feita para compor o famoso exército de aliados e se inscreve sob o comando de João de Áustria para combater os otomanos em Lepanto.

Como é sabido, Cervantes se arrisca destemidamente. Ele busca de todas as maneiras alcançar o perdão pelas loucuras que fez, mas também conseguir ascensão na nobreza, algo que ambiciona desde sempre, mas jamais verá realizado. Numa das refregas o agitado e valente soldado é atingido de forma violenta por um fragmento de granada. A explosão feriu todo o lado esquerdo do seu corpo, deixando os membros seriamente avariados. Decorre daí a suspeita folclórica de que, se tivesse sido cumprida a primeira parte da condenação em que Cervantes perderia a mão direita e agora ferido na batalha, vendo inutilizando todo o lado esquerdo, jamais o Dom Quixote teria sido escrito, perdendo a humanidade a criação da maior de suas obras primas.

Ao retornar para a Espanha após ter se recuperado das feridas – de posse de vários documentos atestando a sua bravura e recomendando o aproveitamento em cargos imperiais – o barco em que Cervantes viaja é seqüestrado por piratas árabes: passageiros e tripulantes são feitos prisioneiros. Em Argel, Cervantes vive a planejar fugas espetaculares, na ânsia de chegar à Espanha e finalmente conseguir a posição social que tanto sonhara, ambição desta vez lastreada nas façanhas heróicas da batalha de Lepanto. A sua atuação teve o testemunho subscrito por nada menos que o próprio João de Áustria, comandante supremo e meio-irmão de Filipe II. Nada consegue e o suplício só termina quando os parentes conseguem o dinheiro suficiente para pagar o resgate. São mais de três anos como prisioneiro – e mais uma vez escravo – do manda-chuva do país, ocasião em que também se torna seu amante, para não perder a viagem.

No entanto está vivo e reencontra a família com um negócio de pensão (hospedaria) montado em Madri. Cervantes usa seus conhecimentos e facilidades sociais para fazer publicidade e expandir o negócio. Viajantes vindos da Itália, da França, dos Países Baixos ali se hospedam. A recepção está aos cuidados da sua irmã Andrea Cervantes, que sabe encher os hóspedes mais importantes com todas as regalias que a posição social merece. Muitos deles deixaram relatos agradecidos e gorjetas valiosas que registram a excelência do bom tratamento que receberam na pensão dos Cervantes. É neste momento que Arrabal, com um dom que só ele possui, consegue transformar Miguel de Cervantes em um legítimo proxeneta, capaz de deixar envergonhado o mais afamado cafetão da Lapa carioca – acusando-o de usar a sensualidade da irmã para atrair hóspedes.

Mas... plagiário? É claro que todos os cervantistas conhecem as leituras e pesquisas que serviram de base para a feitura do romance. Também a elaboração da principal personagem do livro O Genial Fidalgo Dom Quixote de la Mancha já foi objeto de muitos estudos. No próprio romance Cervantes deixa algumas pistas – não são poucas – como no episódio em que são condenados e incendiados muitos livros de cavalaria da sua biblioteca. Quantos e quantos volumes esmiúçam os antecessores e inspiradores do Dom Quixote!

No entanto, a maior influência coube a Arrabal descobrir, na figura de Feliciano de Silva, antecessor de Cervantes em vários livros de cavalaria – os vários amadises, os romances pastoris, as Celestinas – foi o autor mais admirado não só por Cervantes, mas também por muitas gerações de leitores, eis que suas obras eram muito traduzidas e sempre reeditadas. Arrabal capricha em localizar aqui e ali os sinais mais óbvios de que Miguel de Cervantes não só se serviu da obra de Feliciano de Silva como modelo, mas adquiriu uma cumplicidade tal, uma proximidade tão próxima, que só se pode chegar à fatal conclusão – plágio.

E se é Fernando Arrabal quem tudo isso diz, escreve e assina embaixo, quem sou para contradizê-lo?

Quanto ao livro em si, Um escravo chamado Cervantes é de leitura muito difícil. Ou Arrabal transportou para esta pseudobiografia todas as loucuras inatas da escritura arrevezada que o levou a ser considerado um escritor maldito na melhor das tradições e escreveu mais uma obra indecifrável e cabalmente intraduzível – portanto, se traduzida, totalmente ilegível – ou Carlos Nougué é na verdade o pseudônimo de um desses programas de tradução simultânea que infestam a Internet com a pretensão de enterrar de vez o tradutor...

Porque – é sabido – Fernando Arrabal sempre foi um escritor “difícil”, isto é, autor de textos herméticos e de dupla ressonância. São dramas, romances, roteiros e outros etcéteras que possuem características próprias. Partindo de uma escola que se poderia traduzir surrealista, Arrabal descreve seus temas montando o texto sobre uma estrutura fractal. São textos que soam melhor no teatro ou no cinema, onde o diretor pode improvisar e recriar à vontade, segundo uma interpretação singular.

Por isso mesmo a tradução jamais será entendida pelo leitor não iniciado em Fernando Arrabal. Até mesmo o tradutor mais experimentado pode cair nas armadilhas semânticas, embora se possa pensar que traduzir do espanhol para o brasileiro seja fácil. Não é. Daí a brincadeira acima que fiz com o Carlos Nougué, cuja tradução desta biografia cervantina, Um escravo chamado Cervantes, de Arrabal, só vem demonstrar que desta vez quem foi traído foi o tradutor e não o traduzido.

3 comentários:

Anônimo disse...

Não fosse a objetividade do texto, essa seria mais uma estafante resenha para se ler. Sobre o livro de Arrabal, só faz atiçar a curiosidade de esmiuçar Cervantes - seja por sua habilidade narrativa, seja pelo escritor que foi, seja pelo o que ainda não sabemos de si.

Rosa Brava disse...

FELIZ ANO NOVO, com a divulgação de muita Poesia... :-)))

Que em 2008 concretize seus sonhos

Um abraço de Portugal.

Anônimo disse...

lEGAL UM PANELEIRO PORTUGUA ,
ALEM DE SER UMA RAÇA ETNICAMENTE INFERIOR SE IDENTIFICA MOSTRANDO INTELECTRUALIDADE,VAIS FAZER MATEMATICAS