foto sem crédito.
No carnaval a vida muda. O país muda. As pessoas mudam.
Tantos pudores cotidianos são esquecidos. Os desejos mais íntimos afloram à pele nos carnavais das ruas e dos bailes.
Não há Josés, Marias, Franciscos, nem outras pessoas que sejam. Há, sim, foliões lançados ao transe coletivo, à catarse coletiva dos desejos oprimidos no dia-a-dia em nome de uma suposta vida normal.
Não há a necessidade de dissimulação para consigo mesmo. Os foliões se entregam aos folguedos e à libertinagem.O carnaval é a festa que melhor representa a cultura brasileira em todos os seus aspectos. Num misto de tradições populares e antigas tradições pagãs.
É a união de inúmeros personagens míticos e folclóricos: Baco, Momo, Pierrôs, Colombinas, Baianas das enormes saias que rodopiam nos desfiles, corpos lânguidos que saracoteiam pelas ruas exalando sensualidade, luxúria e o cheiro do cio que enche a atmosfera libertando os pudores; os carros que fazem suas alegorias à temas diversos, o gigante Galo da Madrugada... O mundo pára.
A vida pára.
Durante quatro dias, ninguém mais se preocupa com as oscilações do mercado, com a cotação do dólar, com os baixos salários, com os escândalos de todos os dias, com a corrupção, com a pobreza, a miséria, a fome... Tudo é festa. Festeja-se a própria insensatez.
Todos se entregam à ilusão temporária a que chamam alegria, até que chegue a quinta-feira e todos retomem suas velhas e rotineiras vidas. Carnaval é a festa de todos.
Não há distinção de classes. Não há luta de classes.
Ainda que as diferenças se façam perceber na magnitude dos bailes nababescos e dos camarotes VIP dos endinheirados, celebridades descartáveis e candidatos à celebridade descartáveis; onde os “colunistas sociais” se esfalfam nos regalos e bajulações.
Título curioso, aliás, para uma categoria que não se vê no meio do povão, nas arquibancadas dos desfiles das escolas de samba, nas ruas, onde os corpos suados pululam ao som dos trios-elétricos, dos blocos de rua, das orquestras de frevo, Caboclinhos, Maracatus, Bois-Bumbás e todas as manifestações populares pelo Brasil adentro, onde está o verdadeiro carnaval.
Os carnavais dos versos de Nelson Ferreira, Chiquinha Gonzaga, Braguinha, Edgard Moraes e tantos outros grandes nomes da nossa cultura se perdem aos poucos, salvo iniciativas de grupos isolados...
Saudosismo dos blocos líricos e antigos carnavais? Não sei... Não vivi esses tempos. Apenas conheço as canções dos carnavais poéticos...
EVOCAÇÃO Nº 1(Nelson Ferreira, 1956)
"Felinto, Pedro Salgado, Guilherme, Fenelon
Cadê teus blocos famosos
Bloco das Flores, Andaluzas, Pirilampos, Apôs-Fum
Dos carnavais saudosos
Na alta madrugada
O coro entoava
Do bloco a marcha-regresso
E era o sucesso dos tempos ideais
Do velho Raul Moraes
Adeus, adeus minha gente
Que já cantamos bastante
E Recife adormecia
Ficava a sonhar
Ao som da triste melodia..."
... Apenas sinto a estranha sensação de que a nossa cultura aos poucos vai sendo canibalizada. A poesia, o lirismo, as tradições folclóricas vão sumindo.
Os carnavais da grande massa popular aos poucos vão se tornando em imensas feiras livres, cujo único objetivo é a venda de pretensas musiquinhas irritantes, abadás e cervejas de todas as marcas. E que, como fonte de lucro abundante, se prolifera nos chamados “carnavais fora de época”, onde se despejam, como que num grande buraco negro, todas as mazelas que açoitam nossa sociedade.
Esconde-se o lixo debaixo do tapete.
E assim, embriagados nos delírios desses dias de folia, a vida segue seu rumo. Despercebida e com poucos ideais e ambições. A sociedade vai sendo ludibriada e a cultura histórica se transforma numa cultura descartável, como tudo mais na sociedade moderna.
Assim fazemos a distinção entre o carnaval do engodo e da ignorância e o carnaval da cultura e da diversidade histórica que precisa ser massificado.
E esse carnaval verdadeiro, enquanto houver iniciativas por parte daqueles que cultuam as nossas tradições, será sempre a maior manifestação cultural e popular brasileira.
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