O Novo Dicionário Aurélio define "prova" como "aquilo que atesta veracidade ou autenticidade de uma coisa; demonstração evidente". Nas reportagens ditas investigativas, é algo a ser obtido durante a fase de apuração das informações que vão ser publicadas. Peça tão importante que deve ser checada criteriosamente.
Na entrevista concedida à Folha de S.Paulo (27/1), o ex-agente de inteligência do governo uruguaio Mário Neira Barreira afirma que João Goulart, deposto em 1964 e morto em 1976, foi assassinado por envenenamento a pedido do governo brasileiro.
A rigor, não estamos diante de um furo jornalístico. Há duas semanas, após entrevista de Barreira com João Vicente Goulart, filho de Jango, a família entrou com uma ação na Procuradoria Geral da República na qual pede que se investiguem as circunstâncias que cercaram a morte do ex-presidente em seu exílio, na Argentina.
O que o diário paulista conseguiu foi um material rico em detalhes, algo que pede para ser reconstituído como acontecimento histórico relevante, podendo tanto confirmar a versão oficial (ataque cardíaco fulminante) como refutá-la.
O que está em questão é a disposição e/ou capacidade de se fazer jornalismo investigativo ou deixar que matéria morra na opinião sobre os "especialistas do tema".
Ouvindo o que Jango falava
Ao escrever que Mário Neira "não exibiu provas e disse que o caso era discutido pessoalmente", a jornalista Simone Iglesias, involuntariamente, suscita questões interessantes: o que pode ser considerado prova em um episódio como esse? Uma autorização por escrito do então presidente general Ernesto Geisel ou do delegado do Dops Sérgio Paranhos Fleury? Algum comprimido envenenado com frasco mostrando a validade vencida?
Se considerarmos que o relato do uruguaio guarda inconteste coerência interna – e é verossímil com o contexto político da época – a entrevista pode ser o primeiro passo na concepção de um instigante trabalho de investigação.
Uma história que pede para ser revisitada.
Se, tal como definida no dicionário, "prova circunstancial" é aquela que se baseia em indícios, as palavras do entrevistado não podem ser descartadas por falta de relevância. Como prova testemunhal, conhecida nos meios jurídicos como "prostituta das provas", a posição funcional de Neira é um dado que não deve ser ignorado. O que deve ser apurado não é de pouca monta.
Senão, vejamos:
"Estive na fazenda de Maldonado para colocar uma estação repetidora que captava sinais dos microfones de dentro da casa e retransmitia para nós. Esta estação repetidora foi colocada numa caixa de força que havia na fazenda. Aproveitamos essa fonte de energia para alimentar os aparelhos eletrônicos e para ampliar as escutas. Isso possibilitava que ouvíssemos as conversas a 10, 12 km de distância. Ficávamos no hipódromo de Maldonado ouvindo o que Jango falava."
Uma rara oportunidade
Não há como confirmar junto à família ou ex-trabalhadores a existência dessa caixa e a plausibilidade operacional de escuta no hipódromo? Ou disso cuidam os biógrafos?
"Foi morto como resultado de uma troca proposital de medicamentos. Ele tomava Isordil, Adelfan e Nifodin, que eram para o coração. Havia um médico-legista que se chamava Carlos Milles. Ele era médico e capitão do serviço secreto. O primeiro ingrediente químico veio da CIA e foi testado com cachorros e doentes terminais. O doutor deu os remédios e eles morreram. Ele desidratava os compostos, tinha cloreto de potássio. Não posso dizer a fórmula química porque não sei. Ele colocava dentro de um comprimido."
Certamente, há como se comprovar ou não a existência do médico e seu papel no aparato repressivo. A medicação citada deve ser de conhecimento dos familiares ou de algum clínico com quem o ex-presidente tenha se consultado. Quem sabe não há prontuários no Brasil, Argentina ou Uruguai? Estamos falando do estudo de viabilidades, um procedimento bastante familiar a experientes jornalistas.
Se, conforme é descrito na matéria, "o Exército brasileiro informou que não há hoje ninguém na ativa com condição de responder ou até rejeitar acusações. O mesmo foi dito pela embaixada dos Estados Unidos no Brasil, questionada se houve participação da CIA na suposta operação para matar o presidente João Goulart, em 1976", é hora de a Folha de S.Paulo estabelecer um plano de ação e pôr em campo uma equipe familiarizada com o tema e que a ele se dedique com afinco. Estamos falando da Operação Condor e de uma rara oportunidade: aquela em que a história, sorrateiramente, adentra uma redação como esfinge.
A opção é por demais conhecida para ser repetida como desfecho de artigo.
Ou será que a proverbial preguiça, advinda do exercício constante do denuncismo vazio, levou nossa imprensa a criar um novo preceito jurídico? Algo do gênero: a quem se acusa cabe o ônus da prova?
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